Comentário sobre Aparição de São Isidoro ao Rei Fernando o Santo frente aos muros de Sevilha
Na segunda metade da década de 1790, já recuperado da doença sofrida em 1792 que lhe deixou como sequela a surdes, Francisco de Goya executou obras nas que se observa um profundo cambio estilístico e uma nova liberdade no estilo, no tratamento e o plasmar dos temas. Destes anos finais do século XVIII datam alguns de seus retratos mais destacados, as gravuras a água dos
Caprichos e uma serie de pinturas religiosas: as abóbadas para o oratório da Santa Cueva em Cádiz, os a fresco para São Antonio da Florida em Madrid, e três grandes quadros de altar para a igreja de São Fernando de Monte Torreiro em Zaragoza. Este último conjunto lhe havia sido encomendado pela Junta do Canal Imperial de Aragon, comitente desse templo construído para atender aos empregados do Canal e consagrado em 30 de abril de 1802. Manuel García Guatas (1) e Juliet Wilson-Bareau (2) vinculam hipoteticamente com o encargo a Martín Zapater, confidente e correspondente de Goya em Zaragoza, mas Arturo Ansón Navarro apontou a provável intervenção de outros amigos do pintor que ocupavam cargos importantes no Canal Imperial: o administrador general José de Yoldi e o tesoureiro Pedro Miguel de Goicochea (3).
Os quadros pintados por Goya estavam dedicados a São Isidoro, São Hermenegildo e Santa Isabel de Portugal, por um programa iconográfico que Enrique Pardo Canalís considerou teologal, alusivo a esperança, a fé e a caridade (4), e que García Guatas interpretou em um sentido de afirmação monárquica, pois os três santos se relacionam com reinados da península ibérica e foram objeto de devoção por parte da monarquia espanhola (5).
A pintura do Museu é um rascunho preparatório para o quadro do altar maior dessa igreja aragonesa, perdido ou destruído durante a guerra da Independência, como os dos quadros destinados aos altares laterais. Conservaram-se os três rascunhos, que em 1887 o conde da Viñaza registrou, de forma um tanto imprecisa, em poder de Francisco Zapater (6). José Luis Morales e Marín (7), García Guatas (8) y Juliet Wilson-Bareau (9) notam como o proprietário inicial a Martín Zapater. Ansón Navarro confirma esta noticia e precisa que foram presenteados a este por Goya e passaram depois a seu sobrinho-neto (10).
Para 1900, as pinturas haviam tido diferentes proprietários, conforme os dados consignados no catálogo da mostra homenagem ao pintor aragonês realizada em Madrid nesse ano com motivo de traslado de seus restos a Espanha. Em 1910, Pedro Artal comprou em Paris a
Aparição de São Isidoro e por seu intermédio passou a José Artal e chegou a Buenos Aires em 1911, onde foi adquirido pela Comissão Nacional de Belas Artes. Os dois rascunhos para os quadros laterais foram comprados por José Lázaro Galdiano em 1930 e integram os fundos do Museu Lázaro Galdiano em Madrid:
Santa Isabel atendendo a una doente (óleo sobre tela, 33 x 23 cm, inv. 2021) e
São Hermenegildo na prisão (óleo sobre tela, 33 x 23 cm, inv. 2017). Em 1991, as três obras foram reunidas na exposição realizada em Zaragoza e foram novamente exibidas como um conjunto na mostra
Goya. O capricho e a invenção, em 1993 e 1994.
Dentro deste grupo, o rascunho do Museu é o de maior tamanho. Diferencia-se também pelo formato rematado com arco de meio ponto, definido dentro do retângulo da tela através de linhas escuras no borde inferior e no lateral direito, traçadas a pincel sobre o tono ocre de base, enquanto na parte superior do arco e na lateral esquerda o contorno fica estabelecido pela superposição da capa pictórica (11).
Os três quadros estavam colocados para agosto de 1800 (12) e foram descritos por Gaspar Melchor de Jovellanos em seu diário de viaje quando visitou a igreja de Zaragoza em 1801. O rascunho do Museu coincide com a descrição do quadro localizado no altar maior, ainda que Jovellanos errasse na identificação do episodio histórico e das personagens: “[…] representa a São [branco] pêndulo no ai, como protegendo ao Rei Don Jaime de Aragon para a conquista de Valencia” (13).
A cena representa um fato milagroso que teve lugar durante o local de Sevilha em 1247, que culminou com a reconquista da cidade. O santo bispo de Sevilha, Isidoro, revestido com o pontifical e tocado com o mitra próprios de seu investimento, se lhe aparece ao rei Fernando III ao sair este de sua casa de campanha, coberto com a armadura e o manto, e o impulsa a recuperar a cidade, sua antiga sede, em poder dos mouros. Como possível fonte literária, Pardo Canalís sinaliza a
Vida de São Fernando o III Rei de Castilla y León,
Protetor da Real Brigado de Caravaneiros e lei viva de Príncipes perfeitos de Álvar Nuñez de Castro, cronista de Carlos II, reimpresso em Madrid em 1787, que Goya e seus comitentes pôde haver conhecido (14).
Goya definiu o cenário e os personagens com toques rápidos e ágeis do pincel apenas carregado de pigmento. Estabeleceu claramente o conteúdo narrativo e expressivo da cena e a jerarquia dos personagens representados, indicando seus figurinos e atributos. Contrastou o céu luminoso e a roupa claro do bispo, que inclina no ar e sinaliza a cidade sitiada, com a mancha escura sobre a qual localizou a figura do rei com firmes pinceladas ocres, vermelhas, brancas, e sucintos traços negros. Ante o monarca, rascunhou um grupo de figuras definidas por sintéticos traços escuros e dois personagens ajoelhados que lhe presentam uma coroa e uma espada. Surgiu também, com manchas muito sutis, à visão afastada do perfil turvo de uma cidade, cuja alta torre permite reconhecer a Sevilla com o Cata-Vento.
O rascunho põem em evidencia o papel fundamental que desempenhavam a pincelada e a cor no desenvolvimento do processo criativo goyeniano, e a liberdade e o vigor com que o pintor trabalhava nos casos prévios a concreção final do quadro.
por María Cristina Serventi
1— Manuel García Guatas, “Três rascunhos para os quadros da igreja de São Fernando de Torreiro”, Goya, cat. exp. Zaragoza, Ajuntamento de Zaragoza, 1992, p. 92.
2— Juliet Wilson-Bareau e Manuela Mena Marquês, Goya. O capricho e a invenção. Quadros de gabinete, rascunhos e miniaturas, cat. exp. Madrid, Museu do Prado, 1993, p. 367.
3— Ansón Navarro, 1995, p. 186.
4— Pardo Canalís, 1968, p. 362.
5— M. García Guatas, op. cit., p. 92.
6— Conde da Viñaza, 1887, p. 299. O conde da Viñaza não conhecia os temas de este conjunto e registrou a pintura em poder a Francisco Zapater com o título Assunto desconhecido.
7— Morales e Marín, 1990, p. 259.
8— M. García Guatas, op. cit., p. 92.
9— J. Wilson-Bareau y M. Mena Marqués, op. cit., p. 367.
10— Ansón Navarro, 1995, p. 186. Não se indica a fonte documental.
11— Nas fotografias dos rascunhos sem marcos pode-se observar que a preparação de base é semelhante nos três casos. Publicadas em: J. Wilson-Bareau y M. Mena Marqués, op. cit., p. 243, 244 y 245.
12— Ansón Navarro, 1995, p. 186.
13— Citado em: M. García Guatas, op. cit., p. 92.
14— Pardo Canalís, 1968, p. 362.
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